Trivela
·25 de dezembro de 2022
Trivela
·25 de dezembro de 2022
Texto publicado originalmente em dezembro de 2017
Houve uma época em que o Campeonato Inglês realizava jogos no dia de Natal, 25 de dezembro. As partidas em períodos festivos são muito tradicionais na Inglaterra, mas a tradição mais recente é de jogar no dia 26, o chamado Boxing Day. Mas entrar em campo no Natal também já foi costume na Inglaterra e algumas histórias da época são saborosas. Uma delas envolve uma lenda do Charlton, o goleiro Sam Bartram, um dia de muita neblina e um jogo no Natal.
Era uma época sem TV e ainda estávamos distantes de ver a Premier League ganhar o mundo como atualmente, com transmissão em dezenas de países. A liga inglesa achava que o dia 25 de dezembro era um bom momento para promover jogos às multidões que tinham pouco o que fazer e com o que se divertir e não tinham que trabalhar.
O Natal de 1937 teve uma história curiosa. O clima teve uma participação crucial na história. O Reino Unido amanheceu sob forte neblina e muitos dos jogos programados foram suspensos por falta de condições de visibilidade. Mas um jogo foi mantido: o Chelsea enfrentou o Charlton Athletic no estádio Stamford Bridge. No primeiro tempo, os times empatavam por 1 a 1.
A visibilidade era ruim, mas o jogo continuou mesmo assim. Apesar da partida ter se desenrolado normalmente no primeiro tempo, no segundo a neblina ficou mais forte e não se via nada em campo. O goleiro do Charlton, Sam Bartram, perdia de vista seus companheiros quando seu time atacava. Ele não conseguia ver nem sequer os defensores. Os jogadores reapareciam do meio da neblina quando se aproximavam da área defendida por Bartram. De onde estava, o goleiro não via quase nada além da sua própria área e, claro, não via também as arquibancadas.
Naquela solidão da grande área, Bartram não via nada acontecer por um tempo que ele sentiu ser grande. Grande até demais. Claro, isso era um bom sinal, porque o seu time não estava sendo atacado. “Os rapazes devem estar dando uma sova nesses caras”, pensou o goleiro, segundo escreveu em sua biografia.
“Cada vez eu via menos e menos os jogadores. Tinha certeza que dominávamos a partida, mas me parece óbvio que não havíamos feito um gol, porque meus companheiros teriam voltado para as suas posições de defesa e eu teria visto alguns deles. Também não escutei os gritos de comemoração”, descreveu Bartram.
O goleiro precisava decidir o que fazer, depois de tanto tempo sem ver absolutamente nada acontecer, nem ninguém se aproximar. Ele preferiu não arriscar sair do gol. Achava que poderia vir um contra-ataque rápido que o surpreendesse. Preferiu ficar embaixo das traves, imaginando que o seu time estava atacando, e caso aparecesse um atacante surgido do meio da neblina, ainda teria tempo de reagir e tentar impedir o gol.
“Eu ficava me aquecendo trotando no lugar e por umas duas vezes eu cheguei a ficar na risca da grande área para ver se conseguiria enxergar alguma coisa que estava acontecendo depois da metade do campo”, contou o goleiro na biografia. Mas ele não teve sucesso. Continuava sem ver nada. E sem nada acontecer.
Depois de alguns minutos, finalmente apareceu alguém no campo. Mas não era o que o goleiro esperava. Caminhando, um policial surgiu na sua vista. “O que está fazendo aqui?”, perguntou o oficial, surpreso ao ver o jogador ali. “A partida foi interrompida faz 15 minutos! O estádio está completamente vazio”.
Sem entender o que aconteceu, Bartram desceu para os vestiários. Encontrou seus companheiros já de banho tomado e trocados, se matando de rir do goleiro. Contaram a ele que não o avisaram nada sobre a suspensão do jogo para ver quanto tempo ficaria esperando na neblina. Assim se deu aquele jogo, que acabou mesmo 1 a 1.
Aquela temporada tem algumas curiosidades. Em 1937/38, o Manchester City teve o melhor ataque da primeira divisão inglesa. O time marcou 80 gols em 42 jogos disputados. O mais inusitado é que o time foi rebaixado naquele ano. Isso mesmo: embora tenha sido o melhor ataque, o Manchester City fez apenas 36 pontos, com 14 vitórias, oito empates e 20 derrotas – na época a vitória valia dois pontos.
O campeão da temporada foi o Arsenal, com 52 pontos: 21 vitórias, 10 empates e 11 derrotas. O Charlton do goleiro Bartram ficou em quarto lugar na tabela. O Chelsea terminou aquele campeonato em 10º lugar.
Bartram é um goleiro mítico na história do futebol inglês. Passou toda a carreira jogando pelo Charlton e ganhou até uma estátua na frente do estádio do clube. Embora fosse goleiro, tinha se acostumado a jogar na linha, que era onde atuava nos seus anos de amador. Foi atuando no gol que um olheiro do Charlton, irmão do técnico, o viu jogar e o contratou, quando ele tinha 20 anos.
O que se viu foi uma carreira de 22 anos com muito sucesso atuando pelo Charlton. Ele se tornou uma figura importante e é, até hoje, o goleiro recordista de jogos pelo clube, apesar da interrupção por causa da guerra. Antes da sua aposentadoria, em 1956, o Daily Mirror o descreveu assim: “Ele sempre faz uma defesa fácil parecer boa, uma boa defesa parecer ótima e uma ótima defesa parecer milagrosa”.
Estátua de Sam Bartram em frente ao estádio do Charlton Athletic (Photo by Justin Setterfield/Getty Images)