Trivela
·17 de setembro de 2020
Trivela
·17 de setembro de 2020
O oportunismo e o faro de gol transformaram Bira em um dos centroavantes mais prolíficos do futebol brasileiro na virada dos anos 1970 para os 1980. Corpulento e trombador, o atacante aproveitava sua potência para dominar a área, mas também era inteligente para usar suas virtudes e facilitar a vida dos companheiros – contrariando, aliás, o consagrado apelido de “Bira Burro”. O amapaense viveu o grande momento de sua carreira em 1979, centroavante titular do Inter campeão brasileiro invicto, embora nada se compare à idolatria que desfrutou pouco antes no Remo – a ponto de ter, ainda hoje, o recorde de gols em uma única edição do Campeonato Paraense. O camisa 9 também foi campeão por Macapá, Paysandu, Atlético Mineiro, Juventus e Náutico, além de ter sido cogitado até à Seleção. Um artilheiro que precisa ser lembrado, sobretudo na semana de seu adeus. Aos 65 anos, Bira faleceu na última segunda-feira, em decorrência das complicações de um câncer no fígado.
Nascido em 20 de maio de 1955, em uma família humilde de Macapá, Ubiratan Silva do Espírito Santo começou a bater sua bola nos campinhos da cidade, juntando-se inicialmente ao chamado Reminho – um time de garotos católicos que, para atuar, precisavam comparecer à missa na Igreja de Nossa Senhora da Conceição. “A gente só jogava bola se nós fôssemos para missa. Então, unia o útil ao agradável. Você tinha o seu cartãozinho, de qual missa você foi, e depositava lá. Aí o padre conferia. ‘Então você vai jogar futebol’”, contaria, ao Cuíra Notícias.
No início da adolescência, Bira fazia parte da equipe principal do Reminho, atuando em diferentes posições, inclusive como goleiro. E o talento do atacante logo o levou ao Macapá, que ocupava uma posição de destaque entre os clubes locais. Após um período na base e até mesmo como roupeiro, ganhou sua primeira chance como profissional em 1972, após ser campeão com os aspirantes. Não esperaria muito tempo para estourar.
Vice-campeão amapaense em 1973, Bira ganhou destaque na competição, mesmo desperdiçando um pênalti na decisão contra o Amapá. Chegou a ser reprovado em um período de testes na Tuna Luso, mas voltou para brilhar na conquista do Torneio Integração da Amazônia, a chamada Copa da Amazônia, em 1975. Na competição que reunia representantes de vários estados do Norte, o Leão ganhou a taça em cima do Ferroviário de Rondônia. Bira dividia o campo com Aldo, seu irmão, que depois faria sucesso principalmente no Fluminense. Também seriam campeões amapaenses.
O destino de Bira era naturalmente Belém, que pinçava os principais talentos do Amapá. Em 1976, o Paysandu contratou o centroavante. Bira, entretanto, não teve tanto impacto no Papão. Até participou da conquista do Parazão de 1976, que interrompeu o tricampeonato do Remo, mas o atacante balançou as redes apenas duas vezes. Era reserva de Roberto Bacuri, ídolo bicolor naqueles tempos. E não demoraria para o jovem trocar de lado na rivalidade, atraindo o interesse do Remo.
A negociação do Paysandu com o Remo não envolveu apenas dinheiro ou colocou outro jogador na troca. O Papão queria ter reconhecido o título paraense de 1971, em disputa judicial com o Leão. Os azulinos aceitaram abrir mão do entrevero e, assim, puderam levar o centroavante por 50 mil cruzeiros em maio de 1977. O novo artilheiro desembarcou no Baenão para ocupar a lacuna deixada pelo ídolo Alcino, negociado com o Grêmio, enquanto o irmão Aldo rumaria ao próprio Paysandu naquele momento.
Bira não tardaria a emplacar no Remo e deu sua contribuição à conquista do Campeonato Paraense de 1977, autor de dez gols na campanha, incluindo três deles nos clássicos contra o Paysandu. Também apareceu bem no Brasileiro de 1977, no qual o Leão atropelou adversários do peso de Cruzeiro (4×0) e Palmeiras (3×0). Com mais 11 tentos no certame nacional, no qual os remistas só caíram na terceira fase, Bira fazia sua fama além da região Norte. E consolidou-se em 1978, com mais 15 gols no Brasileirão (incluindo cinco nos 5×1 sobre o futuro campeão Guarani), além do bicampeonato no Parazão. O amapaense balançou as redes 25 vezes no estadual, já um recorde na história da competição. Foram oito tentos num só jogo, durante os 10 a 0 sobre o Liberato de Castro.
A ascensão de Bira não pararia tão cedo. Em 1979, o Remo conquistou o tricampeonato estadual mais uma vez liderado pelo artilheiro. E, desta vez, com um combustível a mais para balançar as redes. Em resposta ao sucesso de Bira, o Paysandu resolveu contratar Dadá Maravilha para comandar seu ataque. E o veterano, com seu estilo irreverente, já chegou provocando uma disputa com o remista pelo posto de goleador do Parazão. O camisa 9 do Leão levou na esportiva e passou a responder na mesma moeda o astro do Papão. Nasceu uma rivalidade dentro de campo, mas também uma amizade fora dele.
No Re-Pa de 30 de abril de 1979, mais de 64 mil pessoas lotaram o Mangueirão, um recorde de público que perdurou por 20 anos no estádio. Bira abriu o placar e, na comemoração, saiu correndo para abraçar Dario – uma brincadeira que acabou levada na esportiva. No fim das contas, com um a mais, o Paysandu empatou: cortesia de Dadá, no que batizou de “Gol Sossega Leão”. Os dois centroavantes seguiram uma disputa alucinante pela artilharia, com duelos particulares nos clássicos dos quatro turnos da competição. Todavia, no quadrangular decisivo, Bira prevaleceu.
O ídolo do Remo não apenas garantiu a vitória por 1 a 0 no primeiro encontro, como também marcou o gol do título, nos 2 a 1 que definiram o tricampeonato azulino. Foi o “Gol Belo”, batizado assim em resposta ao “Gol Feio”, prometido por Dadá e não cumprido. Os dois amigos chegavam a dividir o bicho e a jantar juntos todas as semanas, mas só um teria a honra de terminar como artilheiro do Parazão. E foi o amapaense, autor de 32 gols, quebrando seu próprio recorde do ano anterior. Dadá ficou em 26 – mesmo número de Bira a partir do momento em que o veterano chegou ao Paysandu.
“A gente vira artilheiro e às vezes se acomoda. Aí aparece o Dario que fez eu despertar, pois o time está com toda a carga e vamos fazer gols para deixar qualquer Dario com inveja. Por isso, só tenho é que agradecer a contratação”, declararia Bira, na época, ao jornal A Província. Quase 35 anos depois, também revelaria o desejo de ver seu recorde cair, em entrevista ao Diário Online: “Eu fico com muita tristeza porque ninguém bateu esse recorde na artilharia. Se não conseguem chegar na minha segunda marca, imagine na primeira. Eu queria mesmo era que alguém passasse a minha logo e se tornasse artilheiro, aí a gente fazia uma festa e íamos comemorar. Não quero levar isso para o cemitério. Tenho vontade de passar esse troféu”.
O sucesso de Bira no Pará tornou o centroavante especulado em grandes centros. Grêmio, Santos e Flamengo haviam liderado longas especulações, mas no fim ele acertou com o Internacional para o Brasileirão de 1979. E o consultor do negócio foi justamente Dadá Maravilha, que havia sido campeão nacional com os colorados de 1976. O veterano recebeu uma ligação dos dirigentes gaúchos para saber se o negócio valia a pena e deu sua palavra de que Bira vingaria. O remista precisou deixar a festa pelo tri estadual para viajar a Porto Alegre e fechar sua transferência ao Beira-Rio. E Dadá não errou na aposta.
No Internacional, Bira ganhou o apelido de “Bira Burro” – sobre sua recusa à proposta do Flamengo, quando preferia ir ao Inter, embora existam outras versões à alcunha. Bira era o principal reforço colorado para o Brasileirão. E foi muito esperto, não somente pela maneira como brilhou no clube, como também por ter garantido sua independência financeira. Estreou com gol, balançando as redes na vitória por 2 a 1 sobre o Santa Cruz. Entretanto, fraturou o braço e perdeu o início da campanha até sua recuperação. O centroavante combativo voltaria como titular no ataque de Ênio Andrade e teve sua principal atuação nos 4 a 0 sobre a Desportiva, pela segunda fase, com três tentos – num jogo em que se envolveu num acidente com o marcador Zé Rios, hospitalizado e operado de emergência após um choque de cabeça.
Bira terminou o Brasileirão de 1979 com apenas sete gols, mas fazia um trabalho importante na linha de frente, ao abrir espaços aos companheiros (sobretudo Falcão, um de seus grandes amigos ao lado de Batista) e também ajudar a ocupar o lado esquerdo do ataque. Seu tento mais importante aconteceu na terceira fase, durante a vitória por 3 a 2 sobre o Cruzeiro, que valeu a vaga nas semifinais. Em compensação, daria assistência ao Príncipe Jajá na ida das semifinais contra o Palmeiras, e também serviria os companheiros nos dois confrontos com o Vasco na decisão. No Maracanã, Chico Spina tabelou com o centroavante para definir o triunfo por 2 a 0. Já em Porto Alegre, mesmo em dúvida por uma torção, Bira foi titular e desequilibrou. Deu uma casquinha de cabeça ao tento de Jajá e ainda gerou o rebote para que Falcão sacramentasse o título na vitória por 2 a 1. Seria também um herói no tri nacional do Inter, invicto.
Nem sempre Bira foi titular absoluto dos colorados, mas seguiu fazendo parte de momentos importantes e contribuindo com gols. Integrava o time vice-campeão da Libertadores em 1980, assim como arrebentou no Brasileirão daquele ano. Foram 14 gols em 13 aparições, chegando a liderar uma vitória sobre o Atlético Mineiro em Belo Horizonte e ocupando a artilharia em meados do torneio. Contudo, uma lesão no joelho o tirou da sequência da competição, na qual o próprio Galo eliminaria os colorados nas semifinais. Bira também não jogou as finais da Libertadores diante do Nacional de Montevidéu. Como consolação, o centroavante conquistou o Campeonato Gaúcho de 1981.
Com os problemas físicos custando seu espaço, Bira seria emprestado ao Estudiantes Tecos, onde foi boicotado por seus companheiros mexicanos por ser estrangeiro. Ao menos, aproveitou o tempo para se recuperar por completo e voltar bem novamente ao Internacional. Permaneceu no Beira-Rio até 1982, negociado justamente com o Atlético Mineiro, após mais alguns gols e boas atuações no início do Brasileirão daquele ano.
No Galo, Bira se sugeria como um herdeiro de Dadá Maravilha. Porém, sua carreira entrava em declínio, mesmo com a conquista do Campeonato Mineiro em 1982. Anotou 12 gols em 34 jogos e seria negociado pouco mais de um ano depois, aportando no Juventus. O centroavante também seria campeão na Rua Javari, com o título da Taça de Prata de 1983, o torneio equivalente à segunda divisão do Campeonato Brasileiro. Na decisão contra o CSA, Bira anotou o segundo gol nos 3 a 0 da volta, que forçaram um jogo extra e permitiram a façanha do Moleque Travesso.
Já na sequência da década de 1980, Bira seguiria uma trajetória de andarilho da bola. Atuou por Novo Hamburgo, Náutico, Central, Brasil de Peotas, Catuense e outros clubes do interior do Brasil. Também teve uma rápida passagem pelo Remo, com seis gols pelos azulinos, fechando sua conta pelo Leão com 115 tentos no total – quinto maior artilheiro da história da agremiação. Outro ponto alto veio em Recife, quando ficou seis meses no Náutico e foi campeão no sexto estado diferente, ao faturar o Pernambucano de 1984.
Por fim, mesmo depois de pendurar as chuteiras, Bira continuou ligado ao futebol e fez uma longa carreira como treinador no futebol paraense. Curiosamente, chegou a treinar a Tuna Luso e o Paysandu, antes de assumir o Remo em 2002. Estaria em parte do ano com os azulinos, enquanto o Papão arrancava ao momento mais reluzente de sua história. Também retornaria a Macapá, dirigindo os times locais. Mesmo depois de abandonar a prancheta, ocupou diferentes posições no esporte – de administrador do Estádio Zerão a comentarista esportivo.
Bira descobriu seu câncer de fígado em janeiro e, apesar da mobilização de alguns dos antigos clubes no tratamento, não conseguiu resistir à doença. Faleceu nesta segunda-feira, 14 de setembro, devido às complicações. Seu corpo foi velado na Assembleia Legislativa do Amapá, reconhecimento justo a um dos maiores jogadores do estado. E, entre as memórias que o centroavante deixou, as palavras de Dadá ao jornal O Liberal são definitivas: “Estou muito triste pela morte do Bira, que foi um jogador extraordinário, ele reinava em Belém. O Paysandu me contratou para ‘bater de frente’ com ele, que era o grande jogador daquele timaço do Remo. […] Tenho certeza que o Bira está no céu, marcando muitos gols lá em cima. Sou teu fã”.
* Fica o agradecimento à ajuda imprescindível do amigo Caio Brandão, responsável por indicar parte do material que serviu de fonte ao texto.