Calciopédia
·15 de setembro de 2020
Calciopédia
·15 de setembro de 2020
No futebol do século 21 é bem comum que jogadores troquem de países várias vezes e, assim, viajem pelo mundo para trabalhar. Nos primórdios do esporte, porém, esse intercâmbio não acontecia com frequência e, portanto, podemos dizer que Raimundo Orsi foi um dos primeiros aventureiros do mundo da bola. O argentino, que ganhou uma medalha de prata olímpica pela seleção do seu país de nascença, se transferiu para a Itália para jogar na Juventus e terminou marcando época tanto pela Velha Senhora quanto pela Nazionale italiana. Mumo ainda teve passagens por Uruguai, Brasil e Chile antes de se aposentar.
Natural de Avellaneda, na região metropolitana de Buenos Aires, Mumo tinha mesmo de respirar futebol. O jogador nasceu em 1901 e viu de perto a região se tornar famosa pela rivalidade entre Racing (fundado em 1903) e Independiente (1905), com seus estádios vizinhos. Orsi deu seus primeiros passos no esporte pelo Rojo e estreou pelo clube em novembro de 1919.
Naquela época, o futebol argentino ainda era amador, mas as rivalidades já eram fortes. O Racing já era seis vezes campeão nacional e mantinha o posto de tetracampeão consecutivo quando Orsi começou no esporte. Em 1922, o atacante apareceu para atrapalhar a hegemonia racinguista: eles já tinham oito títulos quando o Independiente conquistou a sua primeira taça nacional.
Como sempre foi um garoto veloz, Orsi acabou sendo posicionado pelos lados do campo – mais precisamente como ponta esquerda. Titular absoluto, graças a sua rapidez e seus dribles, Mumo formou um quinteto inesquecível ao lado de Zoilo Canavery, Alberto Lalín, Luis Ravaschino e Manuel Seone. Os Diabos Vermelhos fizeram o Independiente ser tricampeão da Copa de Competência e, em 1926, voltar a celebrar o título nacional. O Rojo foi campeão invicto ao bater, na última rodada, o San Lorenzo – que também não havia perdido até aquele momento.
O excelente desempenho de Orsi pelo clube já havia aberto as portas da seleção para o seu futebol. Em 1924, recebeu sua primeira convocação para a equipe argentina e estreou contra o Uruguai, em um empate por 0 a 0 – o jogo também marcou a estreia de Luis Monti, seu futuro companheiro de Juventus e outras aventuras.
Raimundo se tornou titular da albiceleste em 1927, ano em que foi campeão da Copa América, disputada em grupo único contra Bolívia, Peru e Uruguai. No ano seguinte, Mumo representou a Argentina na Olimpíada, principal torneio de futebol num planeta sem Copas do Mundo. Se havia entrado em campo apenas uma vez na competição sul-americana, na qual os portenhos levaram a melhor sobre os uruguaios, Orsi foi fundamental nos Jogos de Amsterdã: disputou as cinco partidas e marcou três gols. Contudo, a Celeste olímpica deu o troco e a Argentina ficou com a medalha de prata.
Seu desempenho nos gramados europeus chamou a atenção de clubes italianos, e fez com que Torino e Juventus disputassem sua contratação. No livro “Historia de los Mundiales”, Robert Castro reproduz uma entrevista em que Orsi relata como optou pela Velha Senhora, deixando o futebol amador argentino para trás. “Em Buenos Aires, me visitaram os diretores do Torino e combinamos as condições. Naquele momento, eu ganhava 150 pesos por mês no Independiente e não havia premiação. Os italianos me ofereceram 10 mil nacionais de primeira e 500 pesos por mês, mais os gastos de alojamento, comida etc”, contou.
No dia seguinte, diretores da Juventus cobriram a proposta do Toro e ainda ofereceram três passagens de ida e volta, além de férias de fim de ano. “Mesmo com a opinião da contrária da família e do clube, eu fui”, completou Orsi, que foi o primeiro jogador do Independiente a rumar para o futebol europeu. No fim das contas, Mumo ganhou um salário ainda maior do que o informado: 108 mil velhas liras por mês, um Fiat 509 com motorista particular e uma mansão nas montanhas. Além de receber um ordenado bem superior ao de bacharéis, o argentino teria uma vida de luxo incomum para futebolistas daquela época.
Apesar de toda a pompa, Orsi ficou um ano sem jogar, já que o regulamento do Campeonato Italiano da temporada 1928-29 não permitiu a inscrição de atletas contratados de clubes do exterior. Raimundo – já italianizado como Raimondo – só pode estrear em 1929, no ano em que o torneio foi disputado pela primeira vez em pontos corridos e recebeu a alcunha de Serie A. Em sua campanha de debute pela Juventus, terceira colocada, Mumo fez 15 gols e foi o artilheiro dos bianconeri.
O governo fascista logo tratou de providenciar a naturalização de Orsi, que era descendente de italianos e, assim, poderia defender a seleção italiana – algo permitido pelas leis do país na época e também pela Fifa, que não vetava a convocação de atletas por mais de um time nacional. Raimundo, então, estreou com dois gols numa goleada por 6 a 1 sobre Portugal e, em 1930, conquistou a Copa Internacional pela Nazionale de Vittorio Pozzo.
O neoitaliano Orsi continuou sendo uma máquina de gols em 1930-31, quando a Juventus cresceu de rendimento sob o comando de Carlo Carcano. Mumo marcou 20 vezes em 33 partidas e foi o artilheiro da Velha Senhora na conquista de seu terceiro título nacional. Mas não pararia por aí: Raimundo foi o goleador bianconero também em 1931-32, temporada de mais uma taça. No total, clube conseguiu cinco scudetti seguidos e viveu o período conhecido como Quinquennio d’Oro. A Juventus foi a primeira agremiação italiana a conseguir cinco títulos em sequência – algo fundamental para que o clube se tornasse um dos mais populares no país, visto que o esporte crescia naquela época.
Orsi não era querido apenas por torcedores da Juventus: ganhou o apreço de todos os italianos. A consagração veio na Copa do Mundo de 1934, para a qual foi convocado juntamente a outros três ítalo-argentinos Monti, Enrique Guaita e Attilio Demaría. Eles, inclusive, afirmaram que se recusariam a jogar caso houvesse um confronto com a Argentina. Para a sorte da Itália, isso não aconteceu e Raimundo foi um dos principais nomes da Nazionale na competição, disputada na própria Bota.
Mumo estreou com dois tentos na goleada por 7 a 1 sobre os Estados Unidos e, nas quartas de final, contra a Espanha, cobrou o escanteio que resultou na cabeçada vencedora de Giuseppe Meazza – os corners, inclusive, eram uma de suas especialidades e, volta e meia, terminavam em gols olímpicos. Mais discreto nas semifinais, ante a Áustria, Orsi reapareceu de forma decisiva na decisão, contra a Checoslováquia.
Na final, a seleção italiana saiu perdendo e quase tomou o segundo com uma bola na trave – tudo sob os olhares do ditador Benito Mussolini, que assistia ao jogo do estádio nacional do Partido Fascista, em Roma. Para o delírio dos torcedores, o empate veio aos 81 minutos, em boa jogada de Orsi: ele driblou o zagueiro e bateu colocado no canto do goleiro Frantisek Plánicka. Na comemoração, Monti o chutava e gritava: “salvaste nossa vida”! O regime ameaçava todos os atletas: nas competições, eles tinham de seguir o lema “vencer ou morrer” preconizado pela ditadura. No entanto, a vitória e o primeiro título mundial só viriam na prorrogação, com gol de Angelo Schiavio.
Após a conquista, Orsi jogou mais um ano por Juventus e seleção, com os quais conquistou mais um scudetto e uma Copa Internacional. Em abril de 1935, por conta de uma séria doença que acometeu a sua mãe, o jogador decidiu retornar para o seu país natal. Além de querer acompanhar de perto o estado de saúde de sua progenitora, o atacante percebia que o clima beligerante crescia na Itália e temia ser convocado pelo exército – meses depois, os fascistas invadiram a Etiópia, num dos conflitos que anteciparam a Segunda Guerra Mundial.
O argentino se despediu da Velha Senhora com números expressivos: além do pentacampeonato, anotou 76 gols em 177 jogos. Sem dúvidas, Orsi foi o jogador mais habilidoso de uma época de ouro para a Juventus e um dos primeiros ídolos da torcida, juntamente a nomes como Gianpiero Combi, Umberto Caligaris, Virginio Rosetta, Giovanni Ferrari, Felice Borel e o já citado Luis Monti. Sempre jogando como ponta esquerda, era um atleta fora da curva, que driblava com muita facilidade.
Apesar de sua enorme qualidade, Mumo acabou deixando o seu ótimo futebol na Itália e não teve um retorno agradável ao Independiente. O atacante, então com 33 anos, não conseguiu se readaptar ao futebol sul-americano. Mesmo jogando mal, voltou a defender a seleção argentina numa partida, em 1936, se tornando um dos três jogadores que vestiram a camisa albiceleste antes e depois de defenderem outra equipe nacional.
Depois disso, Orsi teve uma trajetória bastante atribulada. Passou rapidamente e sem sucesso por Boca Juniors e Platense, até parar no Peñarol, do vizinho Uruguai. O veterano argentino chegou a Montevidéu como reserva e ajudou o time a conquistar o quarto campeonato nacional consecutivo – um recorde para a época. No entanto, logo voltou para o seu país: fechou com o Almagro, que iria disputar pela primeira vez a primeira divisão. Apesar dos 12 gols de Orsi, o clube foi rebaixado.
Essa queda atraiu clubes brasileiros interessados em contar com o jogador. Ocorreu um Fla-Flu para ver quem ficaria com o ítalo-argentino e o Flamengo levou a melhor. A adaptação de Orsi acabou sendo favorecida pelo fato de o clube rubro-negro já contar com outros quatro argentinos no elenco – Arturo Naón, Agustín Valido, Alfredo González e Carlos Volante, que defendera Napoli, Livorno e Torino. Raimundo era um reserva de luxo, mas mesmo assim ajudou a dar fim ao maior jejum estadual do clube: com a conquista do Carioca de 1939, a fila de 12 anos acabou.
Orsi foi avisado, logo após a conquista, que seria rebaixado para o time B do Flamengo. Insatisfeito com a notícia, resolveu deixar o clube e tentar a carreira artística: violinista, Raimundo pensou em montar uma orquestra, mas ainda havia equipes interessadas em seu futebol. O argentino chegou a defender o Peñarol outra vez e encerrou a carreira apenas em 1943, pelo já extinto Santiago National.
Depois de pendurar as chuteiras, Orsi teve carreira como técnico e atuou em equipes amadoras da província de Mendoza, na Argentina. Nas divisões inferiores, Mumo teve sucesso com Deportivo Maipú, Independiente Rivadavia e San Martín, nas décadas de 1950 e 1960. Apesar de ter demonstrado cacife para ser um grande treinador, preferiu se afastar dos campos e ir viver em Santiago, capital do Chile.
Raimundo Orsi ficou fora dos holofotes até 1984, quando teve uma das suas últimas aparições publicas. O Independiente conquistou a Copa Libertadores daquele ano e concedeu uma homenagem ao jogador, um dos maiores atletas de sua história – ainda hoje, um de seus 10 maiores artilheiros, com 90 gols. Pouco depois, em 1986, Mumo faleceu em Santiago, por conta de problemas cardíacos. Tinha 84 anos.
Dono de uma carreira invejável, Mumo Orsi pode celebrar feitos incríveis, como os títulos por Independiente e Juventus, que elevaram as duas equipes de patamar. Além disso, o atacante marcou seu nome na história da seleção argentina e da italiana. Pela Nazionale, além de ter sido campeão mundial em 1934, por muito tempo foi o estrangeiro – ou oriundo – com mais partidas com o manto azzurro: 35. Apenas em 2008 foi superado pelo também argentino Mauro Germán Camoranesi.
Raimundo Bibiani Orsi Nascimento: 2 de dezembro de 1901, em Avellaneda, Argentina Morte: 6 de abril de 1986, em Santiago, Chile Clubes: Independiente (1919-28 e 1935) Juventus (1928-35), Boca Juniors (1936), Platense (1937), Peñarol (1938 e 1940-42), Almagro (1938), Flamengo (1939) e Santiago National (1943) Títulos conquistados: Campeonato Argentino (1922 e 1926), Copa de Competência (1924, 1925 e 1926), Copa América (1927), Prata Olímpica (1928), Copa Internacional (1930 e 1935), Serie A (1931, 1932, 1933, 1934 e 1935), Copa do Mundo (1934), Campeonato Uruguaio (1938) e Campeonato Carioca (1939) Seleção argentina: 13 jogos e 3 gols Seleção italiana: 35 jogos e 13 gols