Trivela
·26 de abril de 2023
Trivela
·26 de abril de 2023
A aposentadoria às vésperas de completar 32 anos, inegavelmente, é precoce. Antigos companheiros da mesma idade continuam atuando em altíssimo nível, enquanto a evolução na preparação física permite que as carreiras se estendam mais. Ricardo Goulart, no entanto, preferiu pendurar as chuteiras relativamente cedo e confirmou sua despedida dos gramados nesta terça-feira. A decisão reflete o que foram seus últimos anos. O meia-atacante não conseguiu reproduzir mais o seu melhor e ofereceu apenas alguns lampejos, mesmo sempre atrelado a clubes de massa. Insatisfeito com seu nível, buscará outros caminhos, embora indique que não deva se distanciar do esporte. E, independentemente do que aconteceu mais recentemente, Goulart deixa sua marca. Seu 2014 foi muito especial, num auge que pode não ter se prolongado tanto, mas foi muito alto dentro do futebol brasileiro.
Ricardo Goulart cresceu numa família muito ligada ao futebol. Seu tio, Marião, teve uma carreira respeitável como zagueiro de clubes como o São Paulo, o Internacional, o Náutico e o Sport, antes de se tornar um treinador lendário no São José. O pai, Vítor, também vestiu a camisa do São José, mas a trajetória não prosperou por tanto tempo. Seria ele o principal incentivador dos dois filhos, Juninho e Ricardo, chegando a treiná-los na mesma escolinha de futebol em São José dos Campos. Outro aluno famoso, da mesma categoria de Goulart, era ninguém menos que Casemiro.
Juninho decolou mais rápido a partir do Moreira Sport's. Conseguiu ser aprovado na base do São Paulo e, mesmo sem ganhar chances no Morumbi, construiu uma história respeitável nos Estados Unidos a partir de 2010. O meio-campista superou os 200 jogos pelo Los Angeles Galaxy, onde dividiu o elenco com David Beckham, Steven Gerrard, Landon Donovan e Robbie Keane. Dois anos mais novo, Ricardo Goulart não conseguiu se unir ao irmão. Não passou no teste do São Paulo, na mesma peneira que selecionou Casemiro. Jogou na base do São Caetano e do Taubaté. Pensou em desistir da carreira, mas emplacou no Santo André.
Os caminhos de Ricardo Goulart teriam idas e vindas. Surgiu bem no Santo André pelo Paulistão, mas não causou o mesmo impacto ao ser emprestado ao Internacional em 2011. O clube que realmente mudou a sua carreira foi o Goiás, contratado em 2012. Venceu o Campeonato Goiano, mas o grande feito aconteceu na Série B de 2012. O Esmeraldino conquistou o acesso e se valeu bastante do talento do meia-atacante para triunfar na segundona. Aos 21 anos, Goulart atingia um nível mais alto de maturidade nos gramados e oferecia não só gols, mas também mobilidade e inteligência na construção das jogadas.
O Cruzeiro apostou na contratação de Ricardo Goulart em 2013, ao pagar R$5 milhões para tirá-lo do Goiás. Ainda frequentou o banco de reservas no início, mas emplacou especialmente no segundo semestre daquela temporada. A Raposa estava com o timaço que conquistou o Campeonato Brasileiro sob as ordens de Marcelo Oliveira. Goulart foi ofuscado por outros companheiros naquela campanha, como Everton Ribeiro, mas teria grande parte no título nacional. O meia-atacante esquentava os motores antes de experimentar o grande ano de sua carreira profissional.
Afinal, o posto de Ricardo Goulart como melhor jogador do futebol brasileiro em 2014 é indubitável. Num ano especial, com a Copa do Mundo realizada no país, o atacante sobrou no Brasileirão. Foi o grande artífice no bicampeonato do Cruzeiro e protagonizou lances mágicos. A vitalidade para romper defesas como elemento vindo de trás impressionava. Não à toa, recebeu as principais premiações individuais, como a Bola de Ouro da Placar e o Craque do Brasileiro oferecido pela CBF. Aos 23 anos, Goulart indicava um futuro bastante promissor pela frente. Não à toa, esteve presente na primeira convocação de Dunga após a Copa do Mundo de 2014. Foi quando disputou seu primeiro (e único) jogo pela Seleção, na vitória sobre o Equador em amistoso realizado nos Estados Unidos.
Em tempos de investimento massivo no futebol chinês, porém, Ricardo Goulart deu prioridade ao aspecto financeiro. Assinou com o Guangzhou Evergrande, já firme como uma potência nacional. A partir de 2015, Goulart não apareceu mais nas convocações do Brasil, mas não deixou de gastar a bola na Super League. O primeiro ano, ao lado de Paulinho e Elkeson, foi especial: não apenas conquistou o Campeonato Chinês empilhando gols e assistências, como também se colocou entre os protagonistas da inédita conquista da Liga dos Campeões da Ásia, o grande feito da equipe então dirigida por Felipão. A decisão guardou um encontro especial, com a vitória sobre o Al-Ahli de Everton Ribeiro. O brasileiro também pôde disputar uma edição do Mundial de Clubes.
Ricardo Goulart continuava em alto nível neste momento, mas distante dos holofotes. O atacante conquistou três títulos consecutivos do Campeonato Chinês, com 58 gols e 35 assistências em 85 partidas neste intervalo. Também acumulou premiações individuais. Em 2018, o desempenho caiu por causa de uma lesão no joelho e o Guangzhou Evergrande perdeu sua hegemonia na Super League. Já em 2019, Goulart retornou ao Brasil para vestir a camisa do Palmeiras. Parecia uma ótima na época, até pelo reencontro com Felipão, mas a estadia no Allianz Parque não passou de 12 jogos. Não foi ruim, mas sequer ofereceu lembranças suficientes. Uma nova oferta salarial do Evergrande o levou de volta a Guangzhou.
Contudo, Ricardo Goulart mal jogou no Campeonato Chinês nesta segunda passagem. A queda física se tornava mais clara, assim como a pandemia limitou demais a situação a partir de 2020. O atacante foi emprestado ao Hebei, antes de retornar ao Evergrande. Anotou sete gols em 13 partidas na última temporada, números interessantes, mas abaixo de sua melhor forma. O clube, em crise financeira, rescindiu o contrato em consentimento com um dos melhores jogadores de sua história. Goulart então retornou de vez ao Brasil, mas com interrogações maiores sobre a maneira como poderia render.
A passagem de Ricardo Goulart pelo Santos foi decepcionante. O ambiente do clube pode não ter auxiliado tanto, mas o reforço estelar passou muito longe de ter um desempenho satisfatório. Prova disso é que sequer terminou 2022 na Vila Belmiro. Assinou com o Bahia para a Série B e auxiliou na conquista do acesso, embora seus números também tenham sido modestos. Até começou bem o Campeonato Baiano em 2023, mas a boa fase não duraria e o veterano passou a frequentar o banco de reservas. Sem mais estar satisfeito com os seus resultados individuais, preferiu se aposentar aos 31 anos. Curiosamente, seu irmão Juninho também parou cedo, com o último jogo pela MLS disputado aos 30 anos.
“Para muitos, 31 anos tem muita lenha para queimar. Futebol exige dedicação. Saio grato. Foi decisão muito bem pensada, conduzida da melhor forma. Não é porque encerrei esse ciclo que vou ficar fora do futebol. Decisão que tomei de cabeça pensada. Estou tranquilo. Olhando meu histórico, saio feliz”, declarou Goulart. “Eu sempre fui profissional, faço autocrítica. Na minha carreira toda foi dessa maneira. Acho que, nos últimos dias, os meus números… Estava me cobrando muito isso. Na vida, temos que saber nos retirar. Não foi por falta de dedicação. Acho que, quando começa a mostrar algumas situações, a gente tem que ter a sabedoria para ser grato”.
Os anos na China certamente garantiram uma condição financeira ótima para Ricardo Goulart. Não à toa, o atacante é cotado como um possível investidor para a SAF do Santa Cruz. Vai poder direcionar sua experiência nos gramados de outra forma. Mas, independentemente do que o futuro trouxer, o passado foi bem rico. A decepção mais recente tende a ser esquecida no longo prazo. Muito mais marcante será a idolatria no Cruzeiro, mesmo que curta, e a magia naquele bicampeonato brasileiro. Certamente cumpriu o sonho do garoto reprovado em peneiras e que quase desistiu do futebol.